PROSAS EM VERSOS

SER POETA, É SENTIR AFLORAR DA PELE SENSIBILIDADE, É OUVIR O GRITO DOS QUE NADA DISSERAM, É VER POR UMA GAMA DE CORES INVISÍVEIS À MACROSCÓPICA VISÃO DOS INSENSÍVEIS, É PENETRAR IMPIEDOSAMENTE À ALMA HUMANA.

domingo, 11 de março de 2012

Não Fora o Mar!



Carmen Alice Ribeiro




Não fora o mar, 
e eu seria feliz na minha rua, 
neste primeiro andar da minha casa 
a ver, de dia, o sol, de noite a lua, 
calada, quieta, sem um golpe de asa. 

Não fora o mar, 
e seriam contados os meus passos, 
tantos para viver, para morrer, 
tantos os movimentos dos meus braços, 
pequena angústia, pequeno prazer. 

Não fora o mar, 
e os seus sonhos seriam sem violência 
como irisadas bolas de sabão, 
efémero cristal, branca aparência, 
e o resto — pingos de água em minha mão. 

Não fora o mar, 
e este cruel desejo de aventura 
seria vaga música ao sol pôr 
nem sequer brasa viva, queimadura, 
pouco mais que o perfume duma flor. 

Não fora o mar 
e o longo apelo, o canto da sereia, 
apenas ilusão, miragem, 
breve canção, passo breve na areia, 
desejo balbuciante de viagem. 

Não fora o mar 
e, resignada, em vez de olhar os astros 
tudo o que é alto, inacessível, fundo, 
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros, 
iria de olhos baixos pelo mundo. 

Não fora o mar 
e o meu canto seria flor e mel, 
asa de borboleta, rouxinol, 
e não rude halali, garra cruel, 
Águia Real que desafia o sol. 

Não fora o mar 
e este potro selvagem, sem arção, 
crinas ao vento, com arreio, 
meu altivo, indomável coração, 

Não fora o mar 
e comeria à mão, 
não fora o mar 
e aceitaria o freio. 

Fernanda de Castro,
 in "Trinta e Nove Poemas"

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