II
O sol agora é de um fulgor compacto,
E eu vou andando, cheio de chamusco,
Com a flexibilidade de um molusco,
Úmido, pegajoso e untuoso ao tacto!
Reunam-se em rebelião ardente e acesa
Todas as minhas forças emotivas
E armem ciladas como cobras vivas
Para despedaçar minha tristeza!
O sol de cima espiando a flora moça
Arda, fustigue, queime, corte, morda!...
Deleito a vista na verdura gorda
Que nas hastes delgadas se balouça!
Avisto o vulto das sombrias granjas
Perdidas no alto... Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla circunferência das laranjas.
Ladra furiosa a tribo dos podengos.
Olhando para as pútridas charnecas
Grita o exército avulso das marrecas
Na úmida copa dos bambus verdoengos.
Um pássaro alvo artífice da teia
De um ninho, salta, no árdego trabalho,
De árvore em árvore e de galho em galho,
Com a rapidez duma semicolcheia.
Em grandes semicírculos aduncos,
Entrançados, pelo ar, largando pêlos,
Voam á semelhança de cabelos
Os chicotes finíssimos dos juncos.
Os ventos vagabundos batem, bolem
Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...
E a alma dos vegetais rebenta inteira
De todos os corpúsculos do pólen.
A câmara nupcial de cada ovário
Se abre. No chão coleja a lagartixa.
Por toda a parte a seiva bruta esguicha
Num extravasamento involuntário.
Eu, depois de morrer, depois de tanta
Tristeza, quero, em vez do nome - Augusto,
Possuir aí o nome dum arbusto
Qualquer ou de qualquer obscura planta!
III
Pelo acidentadíssimo caminhoFaísca o sol. Nédios, batendo a cauda,Urram os Dois. O céu lembra uma laudaDo mais incorruptível pergaminho.Uma atmosfera má de incômoda hulhaAbafa o ambiente. O aziago ar morto a morteFede. O ardente calor da areia forteRacha-me os pés como se fosse agulha.Não sei que subterrânea e atra voz rouca,Por saibros e por cem côncavos vales,Como pela avenida das Mappales,Me arrasta á casa do finado Toca!Todas as tardes a esta casa venho.Aqui, outrora, sem conchego nobre,Viveu, sentiu e amou este homem pobreQue carregava canas para o engenho!Nos outros tempos e nas outras eras,Quantas flores! Agora, em vez de flores,Os musgos, como exóticos pintores,Pintam caretas verdes nas taperas.Na bruta dispersão de vítreos cacos, À dura luz do sol resplandecente,Trôpega e antiga, uma parede doente Mostra a cara medonha dos buracos.O cupim negro broca o âmago finoDo teto. E traça trombas de elefantesCom as circunvoluções extravagantesDo seu complicadíssimo intestino.O lodo obscuro trepa-se nas portas.Amontoadas em grossos feixes rijos,As lagartixas, dos esconderijos,Estão olhando aquelas coisas mortas!Fico a pensar no Espírito dispersoQue, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança,Como um anel enorme de aliança,Une todas as coisas do Universo!E assim pensando, com a cabeça em brasasAnte a fatalidade que me oprime,Julgo ver este Espírito sublime,Chamando-me do sol com as suas asas!Gosto do sol ignívomo e iracundoComo o réptil gosta quando se molhaE na atra escuridão dos ares, olhaMelancolicamente para o mundo!Essa alegria imaterializada,Que por vezes me absorve, é o óbolo obscuro, É o pedaço já podre de pão duroQue o miserável recebeu na estrada!Não são os cinco mil milhões de francos Que a Memanha pediu a Jules Favre...É o dinheiro coberto de azinhavre Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!Seja este sol meu último consolo; E o espírito infeliz que em mim se encarnaSe alegre ao sol, como quem raspa a sama, Só, com a misericórdia de um tijolo!...Tudo enfim a mesma órbita percorreE as bocas vão beber o mesmo leite...A lamparina quando falta o azeiteMorre, da mesma forma que o homem morre.Súbito, arrebentando a horrenda calma,Grito, e se grito é para que meu gritoSeja a revelação deste InfinitoQue eu trago encarcerado na minh'alma!Sol brasileiro! queima-me os destroços!Quero assistir, aqui, sem pai que me ame,De pé, à luz da consciência infame1À carbonização dos próprios ossos!
Augusto dos Anjos