PROSAS EM VERSOS

SER POETA, É SENTIR AFLORAR DA PELE SENSIBILIDADE, É OUVIR O GRITO DOS QUE NADA DISSERAM, É VER POR UMA GAMA DE CORES INVISÍVEIS À MACROSCÓPICA VISÃO DOS INSENSÍVEIS, É PENETRAR IMPIEDOSAMENTE À ALMA HUMANA.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Cálice




Neusa Paixão



Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue..

Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue..

Como beber dessa bebida amarga
tragar a dor e engolir a labuta?
Mesmo calada a boca resta o peito
silêncio na cidade não se escuta.

De que me vale ser filho da santa?
melhor seria ser filho da outra,
outra realidade menos morta,
tanta mentira, tanta força bruta.

Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue..

Como é difícil acordar calado,
se na calada da noite eu me dano,
quero lançar um grito desumano,
que é uma maneira de ser escutado.
Esse silêncio todo me atordoa,
atordoado eu permaneço atento,
na arquibancada, prá a qualquer momento,
ver emergir o monstro da lagoa

Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda (Cálice!)
De muito usada a faca já não corta,
como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!)
essa palavra presa na garganta
esse pileque homérico no mundo,
de que adianta ter boa vontade?
Mesmo calado o peito resta a cuca,
Dos bêbados do centro da cidade.

Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue..

Talvez o mundo não seja pequeno, (Cale-se!)
Nem seja a vida um fato consumado, (Cale-se!)
Quero inventar o meu próprio pecado (Cale-se!)
Quero morrer do meu próprio veneno (Pai! Cale-se!)
Quero perder de vez tua cabeça! (Cale-se!)
Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!)
Quero cheirar fumaça de óleo diesel (Cale-se!)
Me embriagar até que alguém me esqueça (Cale-se!)

Chico Buarque

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Você faz parte daqui