PROSAS EM VERSOS

SER POETA, É SENTIR AFLORAR DA PELE SENSIBILIDADE, É OUVIR O GRITO DOS QUE NADA DISSERAM, É VER POR UMA GAMA DE CORES INVISÍVEIS À MACROSCÓPICA VISÃO DOS INSENSÍVEIS, É PENETRAR IMPIEDOSAMENTE À ALMA HUMANA.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Carlos Menino Beija-flor - Foto = PASSEIO


PASSEIO



Exageram um pouco por aí que o mineiro fala errado, que come letras na pronúncia. Essa característica forte veio mesmo lá dos tempos antigos, quando havia mais roça que cidade. De vez em quando sai mesmo um "nossinhora". Ou "vou comer um trem ali". Por outro lado vejo que os outros estados não falam do mineiro por mal, pelo contrário, com carinho. A zoação acima de tudo é pura, como é a origem do mineiro. Quando a gente diz que é mineiro, logo encostam, gostam de falar com a gente. Fora o gostoso "uai". Proibir mineiro de falar "uai", é proibir nordestino de falar "oxe". Mas a marca do mineiro mesmo é o trem. Em várias regiões do Brasil tem trem, mas nenhum povo é mais associado ao trem do que o mineiro. Dizem que “mineiro não perde o trem”. E não perde um bom causo também. 
Impossível esquecer dos tempos em que minha mãe, eu e algumas de minhas irmãs íamos de trem para Vitória. Digo algumas irmãs porque para irem todos ficava caro. Era preciso revezar. Tantas sacolas, tantas bolsas. Eu não aguentava, tinha que arrastar. "Menino, não arrasta que vai rasgar". Eu não parava quieto dentro do trem, ficava andando pelos vagões. Toda hora vinha o fiscal, que fica picotando as passagens com uma maquininha. Dizia. "Não pode ficar andando pelos vagões. Ainda mais criança". Eu ficava com raiva, porém sabia que ele estava certo, era função dele. Mas daí a obedecer era outro caso . Ele virava as costas, eu ia de novo. Minha mãe quase sempre cochilando. Acho que ela sabia que podia confiar, que eu não entraria em alguma risco. O que me intrigava era o porquê de ter 'primeira classe' e 'segunda classe', se era o mesmo trem. Curioso um dia fui lá e entendi. Tinha o tal de ar condicionado, vento fresquinho, cadeiras estofadas. "É por isso que as comidas vêm pra cá primeiro", pensei. Olhando bem em volta, não gostei. Todo mundo calado, lendo jornal, não davam um pio, não comiam nada. Lá vinha o fiscal de novo, bem ríspido comigo. "Já não falei que não pode ficar andando, ainda mais aqui?". Saí pensando, esnobando aquele gente esnobe. "Grandes coisas essa primeira classe. Ninguém fala com ninguém. Ninguém conta piada, não tocam violão. E vai todo mundo chegar na mesma hora".
Mas o que eu mais gostava mesmo era de ficar debruçado na janela, vendo a paisagem. Os boizinhos lá longe, no pasto. As montanhas, o rio sempre à direita. Alguns passarinhos raros que apareciam. As garças em torno da lagoa. Outras aves fazendo revoada. O cachorrinho bobo correndo atrás do trem. Eu tinha medo dele cair debaixo e morrer. Bobagem minha, ele sim não era tão bobo a esse ponto.
O mais engraçado mesmo era quando chegávamos lá pelas dez da noite e todos riam de minha carinha preta de pó de minério. Tomava um banho depressa, fazia lanche, deitava e fechava os olhos rapidamente, na tentativa de encurtar a noite, para no outro dia, poder ver o mar. Ah, o mar. O mar é uma das mais inspiradas obras de Deus. Deus, além de tudo é um grande poeta. O maior deles.


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