PROSAS EM VERSOS

SER POETA, É SENTIR AFLORAR DA PELE SENSIBILIDADE, É OUVIR O GRITO DOS QUE NADA DISSERAM, É VER POR UMA GAMA DE CORES INVISÍVEIS À MACROSCÓPICA VISÃO DOS INSENSÍVEIS, É PENETRAR IMPIEDOSAMENTE À ALMA HUMANA.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Vocação de Poeta





Magna Azevedo





Recentemente, ao repousar 
Sob essa folhagem 
Ouvi bater, tiquetaque, 
Suavemente, como em compasso. 
Aborrecido, fiz uma careta, 
Depois, abandonando-me, 
Acabei, como um poeta, 
Por imitar o mesmo tiquetaque. 

Ouvindo assim, upa, 
Saltar as sílabas, 
Desatei de repente a rir, 
Durante um bom quarto de hora. 
Tu poeta? Tu poeta? 
Estarás assim mal da cabeça? 
«Sim, senhor, você é poeta», 
Diz Pic, o Pássaro, encolhendo os ombros. 

Quem espero eu sob este arbusto? 
Quem estarei a espreitar como um ladrão? 
Uma palavra? Uma imagem? 
Logo a minha ruína aparece. 
Nada do que rasteja, ou que saltite 
Escapa ao impulso dos meus versos, 
«Sim, senhor, você é poeta», 
Diz Pic, o Pássaro, encolhendo os ombros. 

A rima é como uma flecha, 
Que temor, que tremor, 
Ao penetrar no coração, 
Lagarto a contorcer-se! 
Morrereis assim, pobres diabos, 
Ou ficareis embriagados, 
«Sim, senhor, você é poeta», 
Diz Pic, o Pássaro, encolhendo os ombros. 

Versículos informes que se atropelam, 
Pequenas palavras loucas, que efervescência 
Até que, linha a linha, 
Pendeis todas do meu tiquetaque. 
Haverá espantalhos 
A quem isso diverte? Os poetas serão impiedosos? 
«Sim, senhor, você é poeta», 
Diz, Pic, o Pássaro, encolhendo os ombros. 

Troças, Pássaro? Apetece-te rir? 
O meu cérebro já tão doente, 
Estará o coração ainda pior? 
Ah! receia, teme o meu rancor. 
Mesmo no íntimo da cólera, 
O poeta rima a direito. 
«Sim, senhor, você é poeta», 
Diz Pic, o Pássaro, encolhendo os ombros. 

Friedrich Nietzsche, 
in "A Gaia Ciência"

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Você faz parte daqui